Querido Ricardo Cravo Albin, presidente do Pen Clube Internacional do Brasil.
Querido Professor Arnaldo Niskier, meu bom amigo.
...
Meus amigos e minhas amigas,
Muito boa tarde,
Costuma-se guardar o epitáfio para o fim dos tempos. Mas esta é uma solenidade de premiação da vida. Comecemos por ela:
Eu pinto flores para viver de cores
E morrer feliz.
Contudo, minhas flores são flores que não são flores, em vasos que não são vasos, sobre toalhas que não são toalhas e às vezes são visitadas por borboletas, que nem são borboletas.
São flores alegres, silenciosas, e que clamam: fora da Arte não há solução, ela que a tudo redime e dá direção. Ou melhor: o 21 será o século dos poetas e dos jardineiros, ou não será século nenhum.
Pretensiosa pretensão: pintar uma flor que fosse todas as flores e tivesse todas as cores e pudesse seduzir com todos os aromas. E escrever uma literatura que contasse tudo sem contar nada, que fosse puro som, letra por sobre letra, quase que sem história, palavras inaugurando sentidos passageiros, belamente imprecisos.
Vale sempre repetir: a Pintura é uma arte feliz. Conta com o silêncio que grita e seduz pelas formas e as cores. Tem a precisão da linha, joga com a Beleza ( e a feiúra que dela se deduz) , e jamais engana. E pode ser apreciada apenas com o léxico do coração.
Bem, dizem que em arte o assunto vale pouco. Conforto-me: Já pintei de tudo, de peras e animais à paisagens de serras e de mares. Mas, creio serem as flores a flor da Pintura. Creio mesmo que revolução em pintura é pintar um novo jarro de flores. Nada mais do que isto. Portanto, penso que pinto para que tudo vire pintura. E escrevo para que tudo vire silêncio. Um silêncio colorido, se me permitem. O bom pintor é um fazedor de olhos, o bom escritor suscita imaginações. Ambos criam imagens e assim, humanos melhores.
Amigos,
Entre a Pintura e a Literatura o meu coração balança. Mas, apenas balança, pois a literatura que amo mais parece uma tela pintada com as cores da vida. Pois assim é que a vida cria as cores; sem vida não é cor, é tinta!
Como a arte faz a vida? – eis a nossa questão. Mas, ao pintar um novo jarro de flores, tudo desaparece, pois a arte é anterior à própria vida.
Confesso, porém, que de cores, flores e borboletas sei muito pouco. Sei que sou um pintor profissional que veio da literatura. Um belo dia, talvez cansado do verbo, “achatei” as palavras e comecei a pintar. A pintura me deu mais que o sustento, talvez mesmo tudo. Mas foi na literatura, ao longo de muitos anos, escrevendo a mão e a lápis, afinando o estilo com um estilete bem afiado e usando, sem parcimônia, uma borracha redonda, branca e imaculada, que aprendi a criação artística. Hoje, bem mais que “achatar as palavras”, o correto seria dizer que a pintura pode ter a graça de “plasmar” a vida na tela, sendo esta, sem dúvida, a sua maior, melhor e mais diferenciada virtude.
Autodidata, até onde se pode ser, tudo que por primeiro aprendi, remete à minha meninice, no Encantado, um bairro suburbano do Rio, onde papai, médico no começo de carreira, clinicava por alguns trocados. Ainda hoje, e hoje mais que nunca, sinto, em desencanto, os ares do Encantado, um riacho fétido, de água podre, que dava nome ao bairro... ainda hoje tão pobre, tão abandonado. O cheiro era horrível, os ares, péssimos para a saúde, quase que apenas um esgoto a céu aberto, mas, nele, nadavam uns peixinhos, barrigudinhos, transparentes, onde eu podia ver, alumbrado, na transparência de seus corpinhos, lindos azuis, verdes e vermelhos iluminados. Fascinado, eu os colhia com as mãos em concha e os levava pra casa, como lindos troféus coloridos, que hoje busco reproduzir, em gozo, nas minhas pinturas de flores e paisagens. Mas, era encantado o rio Encantado? Sem dúvida. Era tudo encantado no Encantado, simplesmente porque eu nascia para o mundo. Menino pobre, no após ... pobres tempos de guerra, eu mesmo fazia os meus brinquedos, e armas. Digo armas porque eu sonhava, poeticamente acordado, em ser um índio plumado e virtuoso, saído dos filmes americanos projetados num cinema pulguento do vizinho bairro do Engenho de Dentro. E como bom índio, eu mesmo fazia meus arcos e flechas. Um bom pedaço de bambu, bem raspado com caco de vidro, um cordonê surrupiado das costuras de mamãe, e uma bela pena de galinha da Angola, e eis o tudo que eu precisava para ser um bravo índio brabo. Hoje, quando pinto um poá numa toalha de um jarro de flores, lembro-me das retas firmes e das curvas corretas deste meu brinquedo, lúdico e bélico a um só tempo, e, sobretudo, das bolinhas brancas daquelas penas maravilhosas das galinhas d’Angola. E que não eram as únicas: ... Que palheta maravilhosa eu aprendi nas penas dos galos, no verde das maritacas, no vermelho do tiê-sangue, nos brancos, cinzas e marrons dos peitos e patas dos pombos e rolinhas, que eu tanto amava. E na arte plumária dos belos cocares dos meus amados índios... e que eu via maravilhado no Museu da Quinta da Boa Vista.
Dialética da poética: o paraíso era infernal e o inferno, paradisíaco...
Hoje, revejo a rica carência da minha infância... Sim, eu fui um hábil fazedor e saltador de pipas. Jamais esquecerei o dia em que fiz uma pipa roxa e amarela. Que combinação! Até hoje busco repor este ápice ali perdido... O gosto das cores (... estranho, naquela época, como hoje, quase nunca penso em como combinar as cores, creio que porque as amava... e as amo, tanto, que elas vão se combinando sozinhas, por suas verdades essenciais).
Amar, amar as cores, jamais as tintas.
Isto eu aprendi com as pipas, mas não só. Havia ali uma didática, digamos, “sociologia das pipas”. Eu sabia, sem nem mesmo vê-lo, se o garoto que soltava tal pipa era honesto ou não, se era habilidoso ou não, se era bravo ou covarde... E se conhecia os ventos. Que grandes aprendizados encerram as pessoas e os ventos! Mas, não só. Comer as cores, também, no sabor das frutas dos quintais, quase sempre roubadas, o amarelo dos mamões, o laranja das laranjas... Comer com os olhos, inclusive, as flores dos jardins suburbanos, dálias, rosas, cristas de galo... Pois é, péssimo aluno nas escolas, vítima dos ecos rudes da guerra, eu aprendia, sem nem mesmo o saber, o que importava na vida, na minha vida de pintor e escritor de palavras, cores e sentidos inventados.
Sim. Eu aprendi as cores nas bandeirinhas multicoloridas das festas de São João, nas crepitosas fogueiras vermelhas e amarelas, nos pretos ardentes das cinzas, nos quadriculados das roupas caipiras e, mais que tudo, nos balões. Balão! Que lindo, e tão falso aumentativo! Eu os amava, e os sigo amando. E eu mesmo os fazia, sozinho ou em parceria com os mais velhos, e os soltava em delírio, e corria atrás deles, maravilhado, na esperança de possuí-los. Adorava cortar e colar os gomos achuriados, azuis e brancos, vermelhos e pretos, verdes e rosas, amarelos e brancos. Sonho, hoje, com a volta dos balões, sem fogo, como devem ser.
... Bem. Um dia, mal rompida a alvorada, eu vi um balão enorme, apagadinho, caindo suave, silencioso... E fui correndo atrás dele, pois sabia que àquela hora da manhã, muito provavelmente, o balão seria meu. Era um balão imenso, quase do tamanho do céu que nascia!. De muro em muro, de rua em rua, eu o fui seguindo, até parar num muro muito alto, onde, pra meu desespero, ele caiu, e sumiu! Subi numa árvore próxima, e vi que o balão caíra num pátio repleto de homens seminus, ou vestidos de imundos pijamas listrados, que rápido o cercaram numa espécie de dança eufórica, num ritual de grande gozo e libertação... Mas que logo foram cerceados por guardas, ou enfermeiros, que tascaram o balão, e tudo voltou a ser triste, muito triste... Era o pátio do Hospício do Engenho de Dentro. Imaginem! Um hospício chamado de o engenho de dentro. Anos depois, ali mesmo, a Dra. Nise da Silveira provou que a arte curava, ao criar o Museu do Inconsciente. Creio que aquela epifania dos internos, dançando em torno daquele balão ali caído, naquele pátio imundo de horrores, teria me feito artista, poeta e libertário para sempre.
Ricardo Cravo Albin, meu amigo tão querido e de tão longa data...; lá onde nascia o Rio Encantado, no Morro da Água Santa, existia um bloco carnavalesco do mesmo nome, famoso pela autoria do mais belo e completo samba-enredo sobre Tiradentes, o herói; e por insistir em sair desfilando na quarta-feira de Cinzas, quando o Carnaval já tinha acabado, mesmo sob forte repressão da polícia. Este bloco libertário, protótipo de Escola de Samba, em muito me influenciou no aprendizado da dança das cores e na ousadia de suas fantasias tão reveladoras de tantas almas escondidas.
Sei, portanto, caríssimo Arnaldo Niskier, o que é ter nascido e vivido em Pilares, como você..., e também tenho muito orgulho do meu Encantado, o meu mestre encantado. O Pilares sustentou o seu arranha-céu de extraordinárias conquistas. O Encantado, a minha poética.
Lá, naquele bairro inesquecível, permaneci até a adolescência, quando mudamos para Ipanema, onde fui Garoto de Ipanema antes da Garota, freqüentei a Praia do Diabo, pulei das pedras do Arpoador, militei na Ação Popular, entrei para a Faculdade Nacional de Direito, fiz Jornalismo e Teatro, publiquei, plantei e tive filhos. Punido quatro vezes nos três primeiros anos da Ditadura fui finalmente anistiado pelo Governo brasileiro, muito anos depois, em 2012. No ato, ganhei uma rosa vermelha e um pedido formal de desculpas do Brasil. Bem, uma rosa é sempre mais que uma rosa...
Uma necessária digressão:
A Ciência, caros amigos, esta curiosa filha da Arte, diz que as flores surgiram no Cretáceo inferior, trazendo uma grande novidade ao planeta, de pronto imitada por todos os outros seres vivos: a sedução.
Em um dia de sol, na rocha úmida, um proto-ramo de folhas, em luta imensa, querendo-se vivo e multiplicado, protagonizou uma flor. Sim, estamos aqui por causa das flores, pois sedução, para nós, é amor. Amor, como desejo do Bom e do Belo.
Somos, portanto, filhos das flores. Lírios de Salomão, lótus de Baudelaire...
Mais difícil, porém, é saber se a Escritura nasceu antes da Pintura, ou vice-versa, ou mesmo se ambas nasceram ao mesmo tempo. Arrisco dizer, ainda que convicto, que teria sido a Pintura a despertar a escritura, embora seja certo que naqueles tempos iniciais a escritura e a pintura fossem uma só expressão das impressões humanas.
Pintada a pintura, porém, a Escritura ganhou a fina elegância da mão, o silêncio do verbo reverberado, e o barulho que cala; e a imaginação da literatura fez da flor e da borboleta dois belos seres num só. Um dia, eu espero, seremos filhos de ambas, perfumes e cores flanando no ar, libertados e seduzidos, e sem fronteiras.
Imaginemos por um instante: ali, naquele prado, uma flor fez-se borboleta e o poeta já não soube se ele mesmo era uma flor ou uma borboleta, como no conto chinês. Era o sonho, a poética da imaginação e da Beleza brotando da vida. Se a flor era efêmera (quando não bem pintada), a borboleta, por sua vez, não morria; era eterna como a sedução que a flor nos trazia. E aqui floresceu a Arte, a mais pura Arte, mãe de todas as vidas.
Pois bem, ao deixar a vida me levar, tive a sorte da amizade de vários penclubistas e notáveis;
Sergio Rouanet foi um amigo constante e sincero. Humilde em sua excelsa grandeza era um intelectual honesto, que gostava de rir e sorrir, e que amava o Tintim, o carismático repórter das histórias em quadrinhos criado por Hergé. É de sua autoria o notável Os 10 Amigos de Freud, livro fundamental não só para se medir a sua excelência, mas a de Freud e de seus extraordinários amigos. No catálogo de minha exposição na Universidade de Harvard, em 2019, com a audácia e o humor do grande filósofo que era, escreveu que, depois de Deus, ninguém tinha criado tantas flores quanto eu. E arrematou: “e já que estamos mentindo, digo que “mais que Deus” ninguém criou tantas flores como ele”.
Recordo e sinto, intensamente, delicias e saudades das nossas longas conversas nas frias tardes tiradentinas... Sempre acompanhadas das ativas presenças de Barbara Freitag e Adriana Rouanet.
Aurélio Buarque de Holanda era um abnegado escriba. Levava um papelzinho no bolso interno do paletó, onde anotava sugestões de palavras e significados, recolhidas na rua mesmo, ao encontrar os amigos. Sabiamente, não quis morrer, mesmo se sabendo amado, muito amado, lutou por viver e deixar legado. Imenso legado, ele deixou. Honrou-me, certamente por gentileza, com um inesperado verbete em seu icônico, formidável grande dicionário... Ao Mestre, todo o meu carinho.
Antônio Houaiss tinha o mais fulgurante e suave brilho da Cultura universal; honrou-me com um alentado prefácio em meu primeiro livro de imaginações literárias, Maria na Terra de Meus Olhos, editora Rocco, 1975; tão profundo e erudito que eu demorei uns trinta anos para entendê-lo, se é que o entendi completamente. Frágil na aparência, Houaiss me faz lembrar que a força da elegância está na origem de todas as artes.
Eduardo Portela era a delicadeza em pessoa, nunca esteve, foi sempre, um ser gentil; um educador, eu diria; extremamente educado. Em 75, na orelha deste meu livro de estréia, disse tratar-se de um “objeto não identificado“, e pincelando esta frase do livro, “Todo menino ama os pássaros e odeia a polícia”, vaticinou que iria “demorar a ser entendido, até porque muito pouca gente sabe disto”- ele completou. Acertando em cheio.
Bem, nestas minhas rápidas e recentes lembranças, guardo ainda o espanto de Alberto Venâncio Filho, ao fim de minha palestra na Academia Brasileira de Letras, por ocasião do Centenário de Araripe Jr., sobre Miss Kate, o mais famoso romance do grande crítico -, ao nos confessar, de público, que depois da minha fala tinha mudado sua opinião sobre Miss Kate, para ele, e até então, o pior romance de que se tinha notícia. Se a cocota norte-americana de Araripe era duvidosa, dúvida não havia e nem há quanto ao valor e atualidade de seus textos críticos. Ulisses e o Mundo Moderno, por exemplo, entre muitos outros, pois que são tantos e tantos os seus escritos, é uma obra-prima a ser sempre lembrada e cultuada.
Notável cronista, dicionarista, maioral entre os vivos, Ricardo Cravo Albin é um amigo dedicado, desde o fim dos anos 60. Convidado por ele, fui jurado no Prêmio Golfinho de Ouro, do Museu da Imagem e do Som, um dos mais cobiçados prêmios artísticos do Brasil, país imensamente avaro, diga-se, em conceder prêmios a seus valorosos artistas e notáveis. Música, Pintura e Literatura se insinuam e coexistem neste excepcional animador da cultura e defensor das paisagens e imaterialidades do nosso Rio tão belo e sofrido.
Recentemente, reencontrei o amigo jornalista Arnaldo Niskier, formidável educador, filósofo, historiador e criador da Galeria Manuel Bandeira, da ABL, de saudosa memória e necessária reabertura. Ele criou um Planetário, na Gávea, nos anos 70, numa época em que vivíamos de cabeça baixa e quase ninguém olhava pro céu. Magno feito! Somos amigos para sempre.
Reencontro também Carlos Nejar, bela pessoa, lindo poeta, poeta de todos os Pampas. Ele molda as palavras de maneira novíssima e as plasma como bem quer, aonde devem e não devem estar. Elas têm a bela surpresa de uma flor e a clara ousadia do bom esgrimista. Grande poeta! Vem da terra de papai, o Rio Grande do Sul.
Este ano, para o catálogo da minha coleção Flores para Anne Frank, recebi lindas saudações de Antonio Carlos Secchin, Joaquim Falcão, Cacá Diegues, Arno Wehling, Carlos Nejar e Arnaldo Niskier. Muito obrigadíssimo a todos!
Amigos, escusado dizer que me sinto muito honrado e feliz por pertencer ao Pen Clube, e agradecido por sua generosa unanimidade em me eleger, abrigando com isso a Pintura, ou a escritura-pintura, ambas, hoje, tão ameaçadas; tanto quanto as vozes cerceadas que em todo mundo ele denuncia e protege.
Ingresso, portanto, de alma lavada e elevada, no Pen Clube do Brasil, academia fundada pelo prolífico escritor e dramaturgo Cláudio de Souza em 1936; generoso doador desta linda Casa em que estamos, e, por extensão, ao Pen Club Internacional, criado pela escritora e poeta inglesa, brava feminista de primeira hora, Catherine Dawson-Scott, em 1921.
Finalizo dizendo que não sei se sou um bom filho, mas sei que a esta minha Casa torno, procurando plasmar palavras em cores e formas; e comigo, a meu lado, bem perto do coração, trago a mais bela das minhas flores que não são flores, a minha amada esposa Cidinha de Alencar Araripe, Presidenta da nossa Fundação cultural, mãe de nossos gêmeos e inspirada namorada de tantos e tantos anos.
Muito obrigado.
Oscar Araripe