A PALAVRA FALA, A PINTURA É SILÊNCIO: A POÉTICA “IMACULADA” DE OSCAR ARARIPE
Por Glória Diógenes[1]
« Talvez, por incrível que pareça,
o Perfume tenha criado a arte,
antes mesmo que a Arte tivesse criado a vida »
(Oscar Araripe, 2013)
Em recente visita a Tiradentes, em julho de 2024, na companhia de minha irmã e de seu companheiro, passamos em frente a Galeria e Fundação Oscar Araripe. Ela logo disse animada, vamos entrar, visitar, você não vai esquecer nunca! Ponderei. Era uma tarde quente e tudo que desejava, após um farto almoço mineiro, era encontrar boa sombra, tomar um café, e apreciar o movimento de subida e descida de pessoas e charretes na Rua da Câmara.
Localizada na ladeira da rua que sobe para a Igreja Matriz de Santo Antônio, a casa por si só, faz parte de um belíssimo cartão postal.
Muito aprecio a visita a exposições, ateliês, museus, galerias, mas, naquele momento, me esquivei do convite. Eles insistiram. Falaram sobre o homem, o multiartista que vinha da linhagem de Bárbara de Alencar, um precursor de estilos, que além de pintor e paisagista, era escritor e arte educador.
Recordo que parei e me sentei no parapeito de um casarão antigo. Minha irmã, moradora de uma cidade próxima, Lavras, para dar ainda mais tônus às suas argumentações, revelou que um dos motivos de o meu cunhado ter se disposto a dirigir mais de duas horas e me conduzir até Tiradentes, foi no intuito de me proporcionar a visita à galeria de Oscar.
Não havia mais como escapar. Arrisquei, por último, a dizer que o lugar deveria estar fechado e ele, o artista, recolhido. Afinal de contas, era domingo. Qual o quê, o lugar estava de portas abertas, e com o primeiro bater de palmas dos visitantes, surge o próprio homem, Oscar. E muitas, muitas cores, muitas flores.
No ateliê, além de quadros que parecem nos abduzir a um mundo quimérico de jardins e paletas da invenção, pode-se visualizar inúmeros livros de arte, uma cristaleira antiga, fotografias: rastros de luminosa história de vida. Subi uma pequena escada e lá de cima vi a composição dos pincéis que dão tônus ao magnetismo do lugar. No terraço, onde o artista costuma pintar, o paredão azul da Serra de São José se impõe. No jardim de mais belas flores, livros, quadros, tudo seduz o olhar, atiça a imaginação.
Há encantamentos compondo pequenas partículas no ar.
O amor emoldura o lugar. Oscar, Cidinha, pinturas, escritos, flores, verde e clorofila criam o fluxo poético do inspirar arte e de se expirar a vontade do nômade, o ato de ir ao mais longe de si mesmo.
Chegando em Fortaleza, me lancei no intento de seguir os passos do artista, de perpassar seus lugares de criação, de deitar a vista no seu olhar sobre o mundo, de espreitar suas zonas de sensibilidade. Li, em um tributo feito ao autor, por José Antônio de Ávila Sacramento:
“Ainda jovem, viveu de perto a movimentação do golpe militar de 1964, tendo sido eleito diretor do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, para depois ser cassado e se tornar militante da Ação Popular. Exilou-se como bolsista na Universidade de Harvard, nos EUA, passou pela França e voltou ao Brasil. No ano de 1967 e 68 sofreu censuras e punições várias, voltando a sair do país novamente como bolsista na Universidade Pró-Deo, em Roma. Retornou ao Brasil e trabalhou como crítico teatral, editorialista cultural, colunista, redator e repórter dos jornais cariocas Correio da Manhã, Última Hora e Jornal do Brasil. Em 1975, deixou o jornalismo e começou a produzir literatura, tornando-se, na visão de Antônio Houaiss, um “aedo, poeta, cantador, narrador e cantor”, além de “um escritor de rara beleza e originalidade”. Devido a sua “militância subversiva” e a publicação do livro “China hoje, o pragmatismo possível” (em 1974) fecharam-lhe todas as possibilidades de emprego “na imprensa e fora dela”; assim, em fase introspectiva, a partir do ano de 1976, passou a morar no campo, em Mirantão-Minas Gerais”. Foram treze anos residindo em vida solidária com as plantas, os bichos, os minerais. Foi lá que desenvolveu as habilidades natas da pintura, em uma casa sem eletricidade. Por mais incrível que pareça só assistiu a uma única aula de desenho e pintura. É autodidata.
Oscar é receptor de beleza e criador de caminhos. Como uma vez disse Krenak, sobre seu povo, não tomamos decisões, escutamos os antepassados, ancestrais, recebemos sonhos. Oscar recebe graça e faz do seu corpo afluente do silêncio, caudatário da vontade de potência, porta-voz de energia vital.
Em 2013, ele revelou em uma entrevista para Filomena Ioss:
“A Revolução em Pintura é pintar um novo jarro de flores. Ou seja, inventar maluquices, gratuidades, é fácil. O difícil é criar um novo jarro de flores, já que este é o tema mais clássico, mais sancionado. Depois tem esse grande sentido de « receber com flores », não só os amigos, mas também nós mesmos, quando cansados do deserto, como andantes caminheiros, chegamos em casa. Ademais permite uma liberdade de cores que nenhum outro tema permite. Como pintor eu posso até pintar um céu preto, mas, é escandaloso. Pintura é delicadeza, elegância, excentricidade e sobretudo silêncio. Só um bom jarro de flores, verdadeiramente pintado; isto é, mostrando a « flor da flor » pode ser ainda mais silencioso que a natureza. Eu pinto flores para que tudo vire silêncio e a natureza, a vida possa gritar”.
Ele escreve como quem pinta, ele pinta como quem escreve. Eu diria, que as narrativas de Oscar fluem como córrego, rio caudaloso. Escorrem de seu corpo intenso e carregam seixos, minerais, grânulos que compõem gestos do estar vivo. Imagino que tenha sido por tal razão que ele insiste em repetir a palavra pessoalidade, em oposição à personalidade. Tudo que escreve, pinta, é signo visual, registro de suas andanças no mundo, de sua sinestesia com a natureza e com sua gente. Disse ele uma vez: “Eu pinto para que tudo vire pintura”.
Portanto, a obra Imaculada é também uma escrita visual, também contada por imagens, “poeticamente visionadas e possivelmente existentes, de uma cultura indígena importantíssima, legítima e verdadeira”, tal qual me revelou há pouco o autor.
O leitor experimentará com as letras uma sensação tátil, como se as imagens abrissem janelas de percepção, de alcance do que apenas se espreita. Em sua escrita tudo se mistura, o subjetivo, que segundo o autor, nasce das vísceras, “são extraídos da minha barriga”, e “as paisagens, as marinhas, os eróticos, as flores, que são essencialidades em sua concretude”.
Como profere o escritor Moisés Mota, o livro hoje muito honrosamente lançado nacionalmente aqui na Academia Cearense de Letras, “é um eldorado do agora, um projeto que grita, sem amarras, por uma renovação essencial”.
A obra “Imaculada: a Amazônia que nos deu à luz”, escrita durante quarenta anos, é marco de um novo gênero literário”. E irei dizer as razões. Oyama de Alencar Ramalho ressalta que “Oscar Araripe é um pintor, acrescentaria, um escritor “que já captou o alvorecer de estilos de vida como um profeta dos novos sentimentos”. A obra é uma elegia a um humanismo que se ausenta, que dói e corrói sentimentos, que ao rasgar a vida, dá carne e sangue às palavras.
No Discurso de Posse de Oscar no Pen Clube Internacional do Brasil, em dezembro de 2013, ele diz:
Eu pinto flores para viver de cores
E morrer feliz.
Contudo, minhas flores são flores que não são flores, em vasos que não são vasos, sobre toalhas que não são toalhas e às vezes são visitadas por borboletas, que nem são borboletas.
São flores alegres, silenciosas, e que clamam: fora da Arte não há solução, ela que a tudo redime e dá direção. Ou melhor: o 21 será o século dos poetas e dos jardineiros, ou não será século nenhum.
Portanto, penso que pinto para que tudo vire pintura. E escrevo para que tudo vire silêncio. Um silêncio colorido, se me permitem. O bom pintor é um fazedor de olhos, o bom escritor suscita imaginações. Ambos criam imagens e assim, humanos melhores.
Oscar, no sentido bachelardiano, para além de um sonhador, um utopista, é um ser por excelência do devaneio poético, seja pintando, seja escrevendo, seja atuando como arte educador, seja semeando jardins. Ele cultiva entre imagens e palavras elementos que embalam as visões do sonhador: a natureza, como o ar, o vento, as nuvens, minerais, flores e desejo.
Como bem sublinha o citado escritor Moisés Mota, “assim surge “Imaculada”, da necessidade de pensar além da atualidade, propondo uma utopia presente”. Digo. Não é simplesmente uma visão ideal projetada num futuro ideal; a obra convida a uma experiência de elevação no aqui e agora. Imaculada, além de uma escrita visual, é um acontecimento, o narrador não fala pelo outro, dá voz ao outro, a outra.
Retomando as palavras de Moisés Mota, trata-se de uma obra que funda um novo continente de escrita. Ela se espraiou no início em 1500 páginas manuscritas com grafite sobre papéis brancos. Posteriormente, após um intenso processo de revisão, o texto foi reestruturado, resultando na atual versão de 682 páginas, enriquecida por 36 belíssimas ilustrações da série Uaupés.
No dorso das palavras de Moisés, estamos testemunhando não apenas um novo gênero literário, como uma nova linguagem de esperança e renovação. Mesmo que a alegria por vezes se esquive diante do horror, da beleza crua da poética de existências, as palavras fundam outra terra.
E o que li de Imaculada? O que vi, vivi na obra cujo nome aparece como Mãe, designando todos os nomes?
Oscar é um peregrino do inconsciente, de um tempo desencontrado das horas, de um lugar quântico, que se ramifica nas dobras de tantos outros, de sentimentos que pululam entre o dito e o sentido. Não pense que alcançará no “Imaculada” uma narrativa encadeada, lógica, pragmática, linear. Aqui, o antes pode ser depois, o futuro espreita o presente, o passado ecoa na paisagem do agora.
Diria, na primeira leitura, que “Imaculada” é um manifesto, de Eros, pulsão de vida, e de tanatos, pulsão de morte. Como diz Bataille, do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte. Embora haja lei, corte, caça, pecado, dinheiro, lixo e dobermans, Oscar dá vida a vida, dá à Mãe a palavra. É o pai que tropeça nas letras:
“ que tu és; papai, tão mal direcionado; o pecado - e quiseras o dinheiro, o ladrão do Amor, o caçador; e que enriquecera e enlouquecera ...e guardara em seu jardim dobermans de puro preto mengélico e que nos abocanhavam o pobre; o nosso de cada dia e mesmo a nós que cedinho já nem fomos andar pela areia do Nhamundá, pois o horror transitava por lá; o lixo a esparramar e a juntar; ele e um outro, um aviador”.
“O papai, o contaminador do Mato Grosso do Pantanal amazônico”.
A mãe tece a vida que não cessa. Ela diz. E nada é sobre ela, é ela, é dela. Escute as letras. Ecoa delas a voz da mulher, tornando esta obra centelha do contemporâneo. Isso se faz nos pequenos gestos, naquilo que Hannah Arendt, no livro Condição Humana, denomina do irrelevante, o que torna não fascinante o mundo moderno, por ignorar miudezas. Oscar, extemporâneo, mestre de tornar grande o invisível.
”É; à época, mamãe já tecia missangas com contas de açaí - e lantejoulas de brilhos inesquecíveis, e apenas com o Carnaval sustentava a família - e eram rosas, pássaros, ramos e finas hipocrisias ...ou os vestidos que enfeitavam o baile do Municipal - e onde, mas onde a chácara e os quintais? ...E estavam as galinhas já soltas, mas pra quê? E era a horta sem porta; sim! E criavam-se grandes galinhas; galinhas selvagens, digo - e havia sementes francas e plantávamos - e poda só de correção”;
A escrita de Oscar é terra, semente, luz que adeja, que agita a paisagem. Cabe ao leitor permitir-se penetrar em matas densas, em um tipo de linguagem que faz conluio com o chão, o sexo, o cerrado, o arroz descascado, com a palha, com o maciço das castanheiras, os açaizeiros, com o pantanal e com ecos da Devastação florestal. Tudo misturado, vida jorrando vida e morte.
“Mamãe... tinha a barriga já minha; e seus olhos se abriram e ela se elevava à luz que me nascia - e suspirava; focada, as narinas abrindo e o ar aspirando. Sim. Mamãe o ar aspirava e me tinha; o retinha e o ‘spargia onde se queria iluminar - e o repetia e balangava a cabeça e a bela madeixa que lhe ao delta nervoso viçava”.
Ler Imaculada é penetrar em veredas de alumbramento, de um sopro criador. É perder-se, “na luz que me nascia”. E não há coisa mais preciosa na literatura do que não se saber onde se está e mesmo assim desejar se demorar. Oscar cria uma literatura que faz parir o começo de tudo, o rasgo do vir ao mundo:
“Nem o ficamos sem tempo e nem o tempo passou; pois mamãe paava o Brasil, o pau-brasil, o pau do Brasil - e ali nos elevamos - e vimos que mamãe, já articulada, ah! Ela dizia: ...que já não era ela a me parir, pois que já não duelava com ela, e que papai devia por mim ser perdoado, pois era ele de um pau-rosa muito raro e perfumado - e a inação já lhe dava a refeição, que ali era farta e variada e bem melhor que aquele sovado bíblico pão”.
O autor é um profanador nato, como diz Giorgio Agamben, não separa aquilo o que se diz como sagrado, do plano dos altares, dos sentimentos e fazeres dos mundos de vida. Profanar, por sua vez, significa restituir as coisas ao livre uso. Deixar romper sempre um novo mundo. É o que Oscar faz acontecer em Imaculada, como está escrito próximo ao fim, na página 560:
Mas, não há mal que dure pouco nem bem que nunca acabe; e, assim, a boá-boa, bem-humorada, nos revelou a proximidade do meu nascimento. Mamãe iria me dar à luz iluminada. Um novo cometa passaria por nós ‘xplodindo uma luz encantadora e rara. Mamãe, como a Imaculada, não sentiria dor alguma e eu já abriria os olhos, falando e colaborando com o Aurélio e o Houaiss, e seus, nossos dicionários, com minhas palavras novas do novo mundo que, comigo, conosco, nascia. Nasciam. E assim, sem nenhum sofrimento, cumprido e feliz, vim ao mundo após aquele sonho revelador e (vixe! - Nada assustador. Afinal, o acabado sempre começava... ou será não?
Por fim leitores, arrisquem-se. Escutem, sigam o compasso-natureza das palavras do homem que diz “há uma pessoalidade nas flores, e as flores não mentem jamais”. Oscar traz as coisas, como diz um dos mais expoentes antropólogos dos tempos modernos, Tim Ingold, de volta a vida. Trama palavra e imagem em fios de emaranhados vitais. Sim Oscar, você nunca foi tão mulher quanto nesse livro. E nós, também.
Gratidão por trazer natureza, cor e chão à linguagem:
“o Sol ...era amarelo e incendiado - e eu ainda não conhecia o amarelo ou o laranja; e ela me ensinou o azul; o verde que nascia da prata e do ouro replantado - e disse que o céu era azul e que, face a nós, havia a árvore - e que respirávamos verde”.
Hoje, respiramos Oscar, Promeu. E a aventura de Imaculada, sua alentada prosa literária. Banquete de vida.
Academia Cearense de Letras-ACL, Fortaleza, 18 de dezembro de 2024
[1] Escritora, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC, Coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (LAJUS), Pesquisadora do CNPQ. Membro do Instituto Histórico do Ceará.